sábado, junho 13

No tempo das cesarianas: a minha


Naqueles nove meses em que nos preparámos para ser pais pela primeira vez, nunca pensámos realmente que o parto poderia ser alguma coisa diferente daquela imagem suada que nos entra pelos olhos e pelos ouvidos, desde sempre. Treinámos respirações, estudámos desde a primeira fila do curso no Centro Pré e Pós Parto o momento das primeiras contrações à fase da expulsão, estratégias de alívio da dor... Na verdade, só queríamos que o nosso filho nascesse bem e que eu, no meu papel, e o pai, no dele, estivéssemos à altura dos acontecimentos para recebermos de braços abertos aquele momento, aquele filho fruto de um tão enorme amor.

Sobrevivi aos habituais enjoos, dores várias, insónias, stress laboral, diabetes gestacional tardia... não sou daquelas mulheres que adoram estar grávidas, mas também não encarei como uma cruz. Senti quase todo o processo como necessário para a minha preparação física e mental. Não delirei com o facto de ser o centro das atenções, nem que o meu corpo estivesse sempre sob vigilância cerrada mas deliciei-me com o amor com que a minha família e o mundo me rodeou, com a celebração daquele globo terrestre à minha frente, com a beleza física que senti por dentro e por fora, com a emoção absolutamente inesquecível de poder amar o meu filho desde as entranhas, sem precisar de uma cara.

O colo estava mais que perfeito para ele nascer, estava virado de cabeça para baixo, até cedo de mais, mas nos últimos dias a barriga continuava alta e a cabeça dele continuava a não encaixar na minha bacia. Continuava a não me passar pela cabeça uma cesariana mas, apesar de eu não ter engordado mais de 9/10kg, havia a possibilidade do bebé estar, à conta da diabetes gestacional, maior do que seria desejável. Passei do descanso para as caminhadas intensas Av. de Roma acima e abaixo. Sem nada acontecer, decidimos com o nosso médico provocar o parto às 40 semanas.

As águas rebentaram a poucas horas de irmos para a maternidade. A sensação de acordar com dores, de me levantar para medir contrações e de sentir toda aquela enxurrada pelas pernas abaixo foi deliciosa. Fez-me sorrir no escuro e apressar a saída de casa de tanta emoção. Agora é que era. Fomos mais cedo, felizes da vida, demos entrada no Hospital da Luz e percorremos aqueles corredores vazios radiantes, como se fôssemos os primeiros pais no mundo, e esperámos com muita tranquilidade que o momento chegasse mas não chegou. As contrações não eram fortes o suficiente para avançar com o processo e a bolsa rota decidimos partir para cesariana.

Nunca fui operada, sou uma medricas de primeira, mas só queria vê-lo, não me importava mais nada. Só pensava para enfrentar os medos: um desafio de cada vez, agora o cateter, vá, não vais chorar. A carinha dele a sorrir-me e a dar-me força em cada momento. Às 11h partimos para o bloco. Todas as enfermeiras impecáveis, o espaço demasiado bom para haver algum tipo de queixa. Como o Paulo só pôde entrar quando já estava tudo preparado, dei as mãos à enfermeira e sorri de nervoso quando chegou a hora da epidural. Senti zero dor. A cara dele outra vez. Fui puxada que nem um peso morto para a mesa do bloco. Panos verdes, rádio ao fundo. Sorriso nervoso e imenso sempre na cara. E eles sempre ali, um já sentado ao meu lado, o outro ainda por chegar. Não ouvi nada de assustador (temia ouvir o nome dos instrumentos do bloco!), só senti a puxarem-me de uma lado para o outro, barulhos de água, foi preciso respirar fundo muitas vezes, morder o lábio umas quantas vezes, apertar as mãos suadas, porque o processo tem pouco de pacífico em sensação mas nenhuma dor, claro, graças à anestesia. E o Paulo sempre ali, grato no olhar por ser eu a passar por aquilo, a olharmos um para o outro, cientes da coisa absolutamente única e inesquecível que nos estava a acontecer, uma intensidade que nunca senti na vida.

Depois de muitos puxões, senti que o agarravam e tiravam, ouvimos aquele choro que para nós já era todo ele, sem o termos visto ainda. Às 11h55 da manhã de 1 novembro aconteceu-nos Tudo. Tudo o que há de mais inexplicável em tudo o que já senti na vida. O meu Luís, o meu Dr. Avô, médico, pai, avô, de coração - e que privilégio inexplicável tê-lo ali - trouxe-nos aquele bebé vermelhinho, ainda tão perdido no mundo e já tão amado. O Paulo só se distanciou nessa altura para ajudar a vesti-lo e ainda bem, porque era a extensão de mim que precisava naquela altura para acompanhar o nosso filho. Coser, zero dor outra vez, só ele, só, só ele na cabeça, nos ouvidos, no coração. Os três corações a baterem acelerados e juntos naquela sala, longe mas perto. E depois eles a virem os dois ter comigo, o Paulo com aquele sorriso maior que a cara, e o Henrique muito enrugadinho junto a mim, com aquele cheiro doce. O mundo a parar e outra vez a sensação que somos os primeiros pais da humanidade.

Depois o recobro, o início da amamentação, os dois ali ao pé de mim, e eu a sentir que podia alimentar-me daquele momento para sempre.

[Não sei o que é um parto normal, mas sei que o meu parto de cesariana foi emocionante, galvanizante, viciante, de uma beleza única para mim. Não percebo quem vê as mães de cesariana como menos mulheres. Percebo que haja milhões de vantagens num parto vaginal, como foi mostrado esta semana na SIC, na reportagem "No Tempo das Cesarianas", mas desta vez foi a natureza que escolheu. Os próximos serão o que puderem ser, mas gostava que passássemos pela experiência de um parto normal. Sobre as escolhas não médicas que podemos fazer, acredito que cada mulher faz o melhor para o seu filho, para a sua família, mesmo que isso signifique não querer associar um momento maravilhoso a algo que considerem traumático. Se há coisa que aprendemos a fazer quando somos mães é a não julgar tanto as outras mães.]




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